quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Aromas


Marcaram na cafeteria às 19h. Ele não gostava tanto de café, mas não seria tolo para recusar o convite. Ela, por sua vez, viajava no aroma dos grãos. Parecia levitar entre os cafezais sem tirar os pés do granito.

- Você não vai pedir o seu?

- Não. Eu não sou muito fã...

- Pois eu adoro café a qualquer hora!

- Eu posso só ficar olhando pra você?


Ela riu e continuou a mexer o café com a precisão de quem abre um cofre antigo. Sete voltas no sentido horário, com diminuição de velocidade a partir do quinto círculo. Nem mais, nem menos. O rapaz não via aquilo com espanto ou curiosidade, mas como um jeito divertido de conhecer suas manias.

Ninguém sabe definir a partir de que ponto as retinas se alinharam. Ele disse que foi logo depois que os cubos de açúcar derreteram, ela bateu o pé e afirmou que tudo aconteceu depois do segundo gole. Para a garçonete, que viu e ouviu a gostosa discussão, o estopim foi o toque involuntário das mãos na troca do cardápio. Os dois concordaram. A noite continuou com goles, pausas, sopros e sorrisos. Despediram-se com promessas de um amanhã. Cada um levando para casa o sabor do café na ponta da língua.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Desmedida Moderação


Ele não queria banda na praça e fogos de artifício. Um abraço com mais calor já seria o suficiente para começar bem a noite de sexta-feira. E por que tanto temor em soltar um sorriso de 60 decibéis no meio da multidão? Por que essa maldita discrição se a cada espasmo o teu gemido ecoa além dos quintais? Pensou em dizer isso de uma forma carinhosa, não ofensiva e até poética. Pensou, mas não disse. Encheu o copo dela de cerveja e bebeu seus sentimentos com moderação. Gota a gota.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

O primeiro pedaço


Ela sempre ganhava o primeiro pedaço de bolo. Um ritual sagrado e previsível. Antes mesmo da faca cortar o recheio os amigos já sabiam o destino daquela fatia. O que eles não sabiam é que por trás daquele gesto existia uma história de perdas, ganhos e muito, muito, muito aprendizado. Soprou todas as velas. Não pediu grana, novas paixões, nem saúde de ferro. Apenas sussurrou numa frequência inaudível: Que o primeiro pedaço do meu bolo sempre encontre tuas mãos abertas. Se isso não for amor o que mais pode ser?

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Coração na boca


Depois de desligar o telefone ele desceu a ladeira como bloco de carnaval: eufórico. Correu para os braços da única mulher que o aceitou sem cerimônias. A longa tira de asfalto parecia não ter fim, mas nem por isso diminuiu o ritmo. As pernas longas e finas finalmente tiveram alguma serventia. Deixou para trás bêbados, guardas noturnos, prostitutas, três sinais, um cachorro, dois churrasquinhos e o carro do lixo. Chegou ao destino em tempo recorde, mas aquela arrancada foi fatal para os pulmões. Desabou no banco da praça. Exausto, exaurido, acabado. Foi aí que ela chegou.

- Oi!

- Eu vim o mais rápido que pude...

- Nossa! Você tá quase infartando!

- Tava com muita saudade...

- Calma. Primeiro recupera o fôlego.

- Eu queria que você soubesse...

- Não fala mais nada. Silêncio. Deita um pouco aqui no meu colo. Aquieta o coração. Temos todo o tempo do mundo, menino.

[EDITADO]


terça-feira, 20 de outubro de 2009

Sobrevivência


De tanto voltar para casa de mãos vazias ele desenvolveu um estilo próprio de conduzir a vida. Instituiu a política da não expectativa. Desde então a frustração ficou mais leve, o fracasso mais amigo, a solidão mais reconfortante. Até sorriu depois de levar um “não” retumbante durante o fim de semana. A amiga, que testemunhou a atuação desastrosa do magricela, perguntou com a sinceridade de quem ainda não sabe calibrar o peso de um discurso:

- Como você pode viver por tanto tempo sem ter alguém a quem segurar a mão?

Ensaiou uma resposta, mas só saiu silêncio. Pagou a conta, beijou o seu rosto borrado de maquiagem e suor e caminhou em direção a porta de saída. Para o grande público era apenas mais um homem feliz voltando para casa depois de uma noite de diversão. Tolos. Nem imaginam que aquele sorriso foi a única maneira que ele encontrou de viver na pior.



domingo, 27 de setembro de 2009

Da cor do algodão


Resolveram dá uma pausa nas reflexões e devaneios. A garganta precisava de hidratação. Pediram uma bebida e brindaram por uma vida mais plena, com mais sorrisos, amizades sinceras e menos solidão. Goles longos para uma noite quente. Secaram as tulipas e ficaram mudos por 47 segundos. Até que uma onda sonora quebrou o silêncio em duas partes:

- Você acha que eu tenho algum charme?

- Acho. Você tem olhos gentis e um canino sedutor.

Ele riu da inusitada e inesperada resposta. Não tinha o costume de aceitar elogios, porque, segundo a sua frágil teoria, os adjetivos podem desestabilizar um homem. Mas ela sabia usar muito bem as palavras. Perdeu as contas das vezes que a devorou secretamente durante a noite alta. Tentando, em vão, decifrar nas entrelinhas as taras e temores que repousavam sobre a página branca. A mesma cor que dava ao seu corpo miúdo o ar de menina francesa, criada nos campos de algodão de um Seridó ancestral.


sábado, 19 de setembro de 2009

Kamikaze


- Vai, seu otário! Segura a mão dela e a conduz ao paraíso mais próximo.


O jeito doce da melhor amiga era o estímulo que faltava. Descolar da parede não foi fácil. Aliás, como alguém com pernas tão compridas demora tanto tempo para cruzar um percurso de aproximadamente cinco metros? Sem planos ou estratégias de vôo, o mais covarde dos kamikazes mergulhou para o seu momento de glória e ruína. Morreu às 2h35. Laudo da perícia: asfixia por beijos ininterruptos. Deixou como herança duas fichas de cerveja (Bohemia. Que fique bem claro!), um panfleto (sobre um festival de rock) e seis reais e quinze centavos. Alguns freqüentadores do bar riam da cena, caçoavam, se eles soubessem que levariam uma vida inteira procurando por algo assim...


Parte do texto foi inspirado no poema “Indivisíveis”, de Mário Quintana.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Encontros casuais em ambientes mal iluminados


Aos esbarrões. Era sempre assim que os dois se encontravam pela madrugada. Cumprimentos iniciais, abraços e sorrisos de até sempre. Um ritual gostoso, mas muito breve. Ela, ao lado das amigas inseparáveis; ele, na companhia dos comparsas de copo e boemia. Naquela noite ainda tentou um “fica mais um pouco”. Mas as circunstâncias não o deixaram pôr em prática o texto ensaiado. Passou o resto da semana refém do calendário. Cruzou os dedos e pediu ao santo que o abençoasse com um novo encontro casual. Não foi atendido. Era um homem de pouca fé. Resignou-se. Voltou para os becos e calçadas mal iluminadas da zona leste. Na pressa de ir ao banheiro bateu de frente com uma jovem que saía do balcão do bar. Primeiro cabeça com cabeça, depois boca com boca, sede com saliva, língua com orelha, dente com pescoço. Sim, era ela. Ainda lembram daquele texto ensaiado? Ficou tão antigo quanto o desejo de ir ao banheiro.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Adeus vida vulgar!


Vou viver de atrevimento, de malícia e rebolado*. Disse isso olhando para o espelho, rindo e calibrando o decote da blusa amarela. Foi até a cozinha e bebeu rapidamente o seu achocolatado, como se o mundo fosse acabar antes da primeira aula. Só diminuiu o ritmo no derradeiro gole, aquela pausa mágica para lamber os beiços. Deixou para trás o copo sujo e uma postura antiga. Aproveitou o tempo de espera no elevador para dar os últimos retoques na aparência, afinal, não queria cruzar a portaria dentro de um corpo que já não era o seu. Realmente não passou despercebida. Chico, o porteiro, disse para o amigo Buarque: “Boy... Essa menina se fez mulher como a muito tempo não costumava ousar.” E foi ali, exatamente naquela manhã de sexta-feira, que a morena aprendeu a provocar e botar fogo no circo, no prédio e na própria vida. A sua passagem deixou bem mais que um aroma gostoso de hidratante. Deixou também um rastro de queixos caídos.
* Frase retirada do Blog da Camila

terça-feira, 23 de junho de 2009

O amor é um grande laço (ou seria um nó?)


Respirou fundo e falou com determinação: Camila, eu quero muito ficar com você! Enquanto esperava a resposta pediu a Deus que abençoasse a sua estratégia suicida. Mesmo confiando no espírito santo, preferiu adotar medidas de segurança. Ou seja, teve o cuidado de fazer a declaração diante de várias testemunhas. Armou o bote dentro de um ônibus lotado. Numa tentativa explícita de pressionar e surpreender a vítima. Afinal, o cobrador e mais uma dezena de pessoas aguardavam impacientemente pela resposta da moça. O veredicto foi impiedoso, porém, sincero:

--- Não dá.... Você é meu amigo!

A solidariedade dos passageiros com o rapaz foi imediata. Ele foi consolado com palavras de fé, esperança e positividade. Recebeu manifestações de apoio e carinho até a hora de descer. Aliás, foi justamente perto da porta que Flávia sorriu pra ele. O brilho nos olhos havia voltado. O que aconteceu com Camila? Passou o resto da viagem flertando com o cobrador. O amor é um grande laço. É ou não é Djavan?

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Deixa eu passar com minha dor


A rua era um celeiro de personagens. Do alto de sua varanda ele assistia o vai e vem de malandros, trabalhadores, ladrões, pedintes, viciados, amigos, crianças, casais. E entre tantos rostos castigados pelo sol das 14h eis que surge um semblante não familiar. Montado em uma velha caloi um homem pedala lentamente, como se estivesse carregando um fardo muito maior que o seu peso. O rosto molhado de suor não foi capaz de esconder as lágrimas que escorriam num desatino de fazer dó. Enquanto a sua bicicleta ziguezagueava, desviando de carros e pedestres, a dor deixava rastros pelo caminho. Marcas de uma via crucis silenciosa, solitária e anônima. Naquela tarde de quinta-feira a angústia andou na contramão, atrapalhando o tráfego e comovendo o público.

domingo, 26 de abril de 2009

Encantos da Cidade Baixa

Foto: Canindé Soares

Cruzou a longa tira de asfalto como uma descarga elétrica. Fulminante. Cortou sinais e infringiu leis, como se estivesse fugindo de mil demônios. Realmente estava, mas para exorcizá-los precisaria muito mais que uma bíblia, água benta e versículos em latim. Por isso escolheu um templo a céu aberto, sem altar, lustres e vitrais. A rua estreita e mal iluminada, a multidão e o seu burburinho, risos fartos, olhares libertinos, coxas, quadris, decotes e pescoços esperando por uma mão carinhosa e atrevida. A cidade baixa era o seu segundo lar. Bebeu para abrir os caminhos, abraçou velhos amigos, gargalhou sem cerimônia e sambou nos paralelepípedos cobertos de história. E quando já parecia estar saciado eis que surge a moça de pele clara. Aqueles olhos verdes denunciavam claramente a sua intenção. Entrou em pânico. E numa atitude desesperada o boêmio, visivelmente nervoso, sussurrou para o amigo do lado:

- O que eu faço agora?

O beijo da moça chegou antes da resposta. Assim como a chuva que começava a cair sobre o antigo casario.

terça-feira, 31 de março de 2009

Mãos caprichosas

Enquanto o tomate padecia sob a lâmina afiada ele ouvia os conselhos e considerações da garota de avental. Sempre pertinentes, articulados, serenos. Poderia passar o domingo inteiro encostado na bancada. Assistindo a escolha dos temperos, a medida certa das porções, o domínio da nobre arte de produzir água na boca alheia. Havia muita doçura naquelas mãos caprichosas. Entre sorrisos, aromas e condimentos ela falou:

- A vida exige uma certa urgência, meu rapaz.

Logo em seguida a primeira lágrima caiu. Depois outra e outra e outra. Não era um choro de tristeza, piedade ou nostalgia. Apenas o reflexo de uma cebola recém-cortada tentando chamar a nossa atenção.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Limitações estéticas


- Ele é feio, mas é legal.

E assim começou a noite de sábado. Com uma carga extra de sinceridade não ofensiva. Por mais espontâneo que fosse o veredicto da estranha, aquelas palavras já não tinham mais tanto peso. Não para aquele rapaz, que aprendeu a rir da própria cara desde muito cedo. Voltou para casa de manhã, sozinho, como de costume. Adormeceu abraçado com a sua feiúra. Talvez com medo de que alguém tentasse roubá-la. Não o culpo por tanto zelo, cuidado e proteção. Afinal, era tudo o que ele tinha.

domingo, 18 de janeiro de 2009

O primeiro passo

-- Pai, como se conquista uma mulher?
-- Seja atencioso com ela, meu filho. Sempre.
-- Só isso basta?
-- Não. Mas será um começo magnífico.

domingo, 4 de janeiro de 2009

A mulher deitada sobre o mármore

O respeito sabotou por décadas a vida daquele homem. A escassez de atrevimento fez dele um covarde, um “bunda mole”, um mané. Uma criatura sem ímpeto, ousadia, determinação, coragem. Nunca teve a decência de assumir riscos. Pelo menos até o dia em que ele viu Fernanda dormindo. Era reveillon e o ano velho já tinha ido embora junto com várias latas de bohemia. Enquanto a alegria entorpecia mentes e corações no jardim, ele preferiu ficar na sala, de olhos grudados na mulher deitada sobre o mármore. Estava prestes a cometer uma loucura que poderia desestabilizar anos de amizade.

O experiente cronista tinha razão: o álcool acorda velhos sentimentos e acende os pecados como numa noite de festa. Por isso avaliou serenamente as possíveis conseqüências que iria sofrer logo após o seu plano entrar em prática. Precisava desesperadamente de um apoio moral para justificar aquele desatino. O apoio veio com a frase do poeta espanhol Félix Lope de Vega: a felicidade é o preço da audácia. Fez daquele pensamento o seu mantra. Só não sabia exatamente qual seria o preço daquela ousadia. Receberia uma tapa na cara seguido de um retumbante “filho da puta!” ou um sorriso sacana, do tipo “Que delícia!”?

Pela primeira vez na vida apostou cegamente suas fichas. Deslizou sorrateiramente a mão entre as coxas morenas e macias de Fernanda. Ela abriu os olhos devagar e perguntou com voz de sono:

- O que você tá fazendo?

Ele, cabisbaixo e constrangido, pediu uma dúzia de desculpas. Estava tão envergonhado diante da situação que a única coisa que queria era sumir daquela sala imediatamente. E foi o que fez. Mas depois de alguns passos ouviu um sorriso gostoso e o convite que o trouxe de volta:

- Você não vai terminar o que começou?

Ele deu uma risada e sem nenhuma cerimônia começou a masturbá-la. Enquanto ela gemia e arqueava de prazer, ele sugava e mordia seus seios fartos. Seios que por tantas vezes povoaram seu imaginário erótico. Aproveitou para ir mais longe. Navegou de olhos fechados até ancorar na flora negra. Um recanto que ele fez questão de explorar com a língua, sem pressa, como se quisesse cristalizar no tempo aquela arriscada e gostosa libertinagem. Ela gemia alto, mas não o suficiente para chamar a atenção dos amigos. Amigos que naquele exato momento gritavam no jardim o seu refrão preferido:

“Deixe-se acreditar
nada vai te acontecer
tudo pode ser
nada vai acontecer, não tema
esse é o reino da alegria”