sábado, 3 de novembro de 2012

Quebrando regras

Ela achou estranhíssimo aquele abraço no primeiro encontro. Na realidade, considerou como invasão de privacidade. Como é possível abraçar alguém que você acabou de conhecer? É um despautério. Um aperto de mão ou um beijo no rosto seria mais correto e sensato. Mas um abraço... Porra... Era demais. Voltou pra casa resmungando. Resmungou por horas. Dois dias se passaram e os resmungos continuavam atazanando o juízo. Precisava colocar um ponto final naquele tormento. Descobriu o telefone do estranho e ligou pra o sujeito.
 

-- Alô?
--- Oi Danilo, é Lucia... Amiga de Flávia. A gente se conheceu no fim de semana... 

--- Oi Lucia! Tudo em paz?
--- Mais ou menos...
--- O que aconteceu?
--- Por que me abraçou naquela noite? Você nem me conhecia...
--- Desculpa. Eu gosto de abraçar as pessoas. É uma coisa que eu faço naturalmente. Não foi nada premeditado. Juro. Mas não vai mais acontecer. Prometo.
--- Como assim não vai mais acontecer? Você quebra a porra das regras, subverte o procedimento padrão, desperta um desejo que eu nem mesmo sabia que estava guardado no peito e quer tirar (literalmente) o corpo fora? Te vira, boy! Eu não quero ficar como uma adolescente ansiosa esperando por um novo esbarrão acidental no corredor...

Foram vistos na fila do cinema tentado criar vínculos oficiais. Desta vez todos os procedimentos de aproximação foram seguidos corretamente.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Código de acesso



Tem medo de sentir, garota? Então tranque o prazer em uma redoma inexpugnável. Adote medidas preventivas, estabeleça um perímetro defensivo, elabore um plano de contingência eficaz. Porque o tesão é bicho astucioso e danado de sabido, conhece a fragilidade dos protocolos de segurança. Eu não quero desqualificar suas estratégias, mas entre o calcanhar de Aquiles e a tua nuca há infinitos atalhos e códigos de acesso. Pra o teu doce desespero.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Do foda-se ao foda-me


Ela queria o pacote completo. Ele ainda não sabia o que queria. Mas, na dúvida, acabaram cedendo a uma química irrefreável. Química que começou logo cedo, na boca da noite, em um bistrô jeitoso de Petrópolis. Eu gosto muito de vinho, mas perco o controle facilmente. A revelação da garota foi uma deixa para o malando completar com rapidez e eficiência a segunda taça. O terceiro brinde potencializou o que já estava em chamas. Os frequentadores assistiram e ouviram com desconforto (mas com água na boca) a sinergia de línguas e os pequenos gemidos que vinham da parte mais reservada do ambiente. A madrugada terminou no apartamento dela. Na penumbra do quarto ele ainda tentou elaborar um discurso fajuto e capenga do não apego. Mas a intervenção dela chegou antes: ei, foda-se e foda-me! Acordaram pela manhã sem respostas conclusivas, mas com uma vontade danada de tomar café com torradas.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Batom vermelho


Compromisso ela tinha. Marcou de sambar na Ribeira com os amigos. Tava na merda. Precisava beber e chutar o rabo de meia dúzia de demônios. Beber não, se embriagar. Mas o desejo de rua não passou da porta do apartamento. Mesmo assim colocou batom vermelho, blusa branca, uma longa saia e gotas de lavanda entre os seios, no pescoço e atrás da orelha. Foi pra sala, aumentou o som, preparou a terceira dose de whisky e dançou como se uma “Pombagira Cigana” a conduzisse até o muro que separa a insanidade da temperança. Saiu do corpo e caiu em si. Pela manhã, já embaixo do chuveiro, ria sem parar (lembrando da performance e do desatino solitário da noite anterior). Os vizinhos nem imaginam, mas embaixo de toda aquela espuma o mundo ganhava alguém menos infeliz.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Da cor de leite

Toda pele alva merece uma mordida. Ela tinha essa tara. Eu não quero dizer com isso que o tesão pelas morenas era algo menor ou inexpressivo. Pelo contrário. O seu colchão presenciou mais de uma vez o balé sinuoso de curvas da cor de canela. Mas quando aquele corpo branco entrou no seu campo de visão o sossego acabou. Perdeu semanas tentando encontrar uma forma de transformar o esbarrão premeditado em chave de conquista. Conseguiu. No espaço apertado um pequeno ventilador oferecia o máximo de hospitalidade. O som alto abafou o primeiro gemido, mas não foi capaz de deter os seguintes. Nem poderia. Quem já teve caninos cravados no pescoço sabe a dor, o arrepio e a delícia de ser uma vítima do desejo.

domingo, 5 de agosto de 2012

Balanço de Mar


A morenice que ela tanto desejava só apareceu depois de alguns dias de sol. Mas antes disso a pele clara já incendiava olhares afoitos. Depois de tirar a última tainha da rede o pescador não resistiu: “Olha o jeito que aquela menina dança. Parece balanço de mar.” No começo eu achei que era enxerimento da parte dele, afinal, eu a vi dançar tantas vezes nos bailes da cidade. Nunca percebi a presença do mar nas suas curvas ou no seu rebolado. O velho tinha razão. O movimento das marés estava lá, no corpo dela, nas pequenas coisas, até mesmo na alça do vestido que desmoronou caprichosamente só pra ver os ombros jogarem uma espécie de capoeira cheia de malícia. Ela nem reparou quando eu cheguei mais perto, quando o meu olhar girou no sentido do seu vestido azul.

domingo, 6 de maio de 2012

Sinais



Nasci com poucas habilidades e quase nenhum talento. Nos campeonatos de futebol da minha rua alcancei a glória de um vice-campeonato. E só. Não é à toa que tanta inaptidão resultasse em conquistas tardias. Pessoas assim aprendem desde cedo o significado do verbo “maturar”, andam pelo mundo com a turma da não expectativa. Mas como é possível sobreviver em um tempo de velocidades, baby? Quero confessar uma coisa. Só ontem é que eu finalmente aprendi a linguagem dos sinais. Aqueles dois, no seu ombro direito, conversaram comigo enquanto você dormia feliz, enquanto nossos amigos, do outro lado da porta, despencavam pertinho do mar, trôpegos de alegria.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Uma nova ordem

Ele não sabia, mas aquele pedaço de bolo, em cima da mesa, era dele. O suco de cajá, na porta da geladeira, também. Não tocou em nada até alguém dizer que podia. Aprendeu desde muito cedo a pedir permissão. A pergunta “eu posso?” vinha sempre antes da vontade, do desejo, da cobiça, nunca depois. A coragem para subverter a ordem natural das coisas só apareceu tardiamente, junto com alguns nacos de maturidade. Já era noite alta quando beijou sem consentimento a morena de sorriso hospitaleiro. Era o começo de uma carreira de pequenos e desajeitados atrevimentos.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A hora do cansaço


Foto: Michele Rodrigues

Cada pessoa tem um jeito próprio de lidar com a gota d´água. Assim como o elefante mais velho da manada pressente o fim da linha, eu também procurei um lugar pra descansar logo depois da nossa última conversa. Já não consigo mais acompanhar o teu ritmo. Enquanto você se afastava tentei catar na memória a primeira topada que causou o descompasso. Tolice. O pingo que fez transbordar o nosso copo estava o tempo todo de braços abertos, pedindo socorro, e só a gente não viu.