sábado, 20 de dezembro de 2008

Canibalismo


Ele bem que tentou fixar a retina no fundo do copo, no suporte do guardanapo, nos pés, no trânsito, na fila do banheiro, no vazio. De nada adiantou. O olhar sempre findava naqueles olhos negros. Ela percebeu o interesse do rapaz. Por isso maltratou o pobre indivíduo o quanto pode. Como era possível tanto sadismo dentro de um corpo tão pequeno? Na despedida virou o rosto. Ele entendeu a deixa (era uma deixa?) e prontamente fez daquele pescoço o seu banquete. Os freqüentadores do bar, diante do ato explícito de canibalismo, reagiram com indiferença. Simplesmente continuaram a mastigar churrasquinhos de carne e frango. Imaginando talvez o gosto e o tempero daquele pescoço suculento e macio. Daquela carne cravada por dentes alheios.

domingo, 5 de outubro de 2008

Burlando mandamentos

Aprendeu desde cedo que não se deve cobiçar a mulher do próximo. Principalmente se o próximo estiver a menos de cinco metros de distância. Mas naquela noite o ensino bíblico foi impiedosamente massacrado pelo tesão.

O sacrilégio não aconteceu sob as luzes de um restaurante, mas na penumbra do bairro mais boêmio da cidade. E naquele perímetro nenhuma tentação seria castigada. Por isso comeu aquela mulher com os olhos até ficar saciado.

Ela percebeu a tímida ousadia daquele homem franzino e esboçou um sorriso despretensioso. O jogo de olhares continuou, mas foi ele que decidiu dá um basta na brincadeira. Antes que a sua integridade física fosse atingida por um cruzado de direita.

Bebeu mais um gole de cerveja e foi até ao banheiro improvisado, que ficava nos fundos de uma oficina. Um verdadeiro cemitério de geladeiras, fogões e condicionadores de ar. Por coincidência (ou não) ela chegou minutos depois.

Enquanto a porta não abria um silêncio ensurdecedor tomou conta do ambiente. O pobre rapaz já estava a ponto de ter um infarto. Precisava desesperadamente de um assunto, de uma deixa, de uma desculpa para estabelecer o tão sonhado diálogo. Afinal, o que se pergunta na fila de um banheiro? Mas quando tudo já parecia perdido eis que o nosso anti-herói dispara uma frase, no mínimo, inusitada:

Você é muito massa!

Ninguém sabe ao certo de onde surgiu tanta coragem e falta de criatividade. De qualquer forma, a expressão foi mais do que o suficiente. Porque logo em seguida ela abriu um sorriso gostoso e arrastou o rapaz para o canto mais escuro da oficina.

Entre aquela montanha de sucata não se escondia apenas um casal de desconhecidos, mas dois famintos que se consumiam numa voracidade estonteante. Durante pouco mais de cinco minutos o décimo mandamento foi substituído por uma sincronia perfeita de línguas e gemidos. Beijou, mordeu e chupou aquela mulher até o alarme do bom senso disparar.

Então decidiram que era hora de se recompor. Uma a uma as peças voltaram ao seu lugar. Ela retornou aos braços do namorado. Ele se juntou aos amigos. Mas antes parou no balcão e pediu mais uma cerveja. Os homens do tempo estavam certos. Aquele calor era o prenúncio de um verão sufocante.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Da série: resgatando anotações (parte III)

O abismo entre o que eu quero dizer e o que é interpretado do outro lado da tela assume proporções preocupantes. Sempre respeitei o triângulo amoroso entre o sujeito, o verbo e o complemento. Mas, ainda assim, o meu discurso passa rente. Desligue tudo, menina. Te encontro naquele mesmo bar. Quero te ver sorrindo com minhas teorias absurdas e o meu humor de improviso. Sem a companhia dessas malditas janelas para intermediar nossas intenções, tentações e digressões.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

Da série: resgatando anotações (parte II)



Apenas ouviu o sussurro:

Você viu, menino? Quantas possibilidades?

Era a vida já saindo da sala escura, rindo e apontando para o palco. Enquanto ela sumia por trás da cortina vermelha ele ficou com cara de idiota, talvez por não acreditar tanto em si mesmo. Mas nem por isso deixou de sorrir. Era um sábado. Dia de alegria.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Da série: resgatando anotações

Ninguém disse a ela que o desejo ardia. Aprendeu na pele e com tempo. Também nunca foi de lutar contra as tentações. Pelo contrário. Não sentia culpa alguma em satisfazer seus instintos. Sempre deixou isso bem claro para os amigos e amantes. Ás vezes não era bem compreendida. Mas como agradar gregos, troianos e potiguares? Preferia ser honesta com os próprios sentimentos. Afinal, o desejo sempre foi seu estandarte de êxtase e libertação. E ponto. Naquela noite ela trazia no pára-brisa do seu Fiat um adesivo com palavras explícitas de Rousseau: Eu senti antes de pensar. Assim como um arauto anunciando a chegada e as intenções do seu mestre.

domingo, 24 de agosto de 2008

De passagem...


Mais uma vez estava diante de um mundo que não era o seu. Sorria, disse ela. Ele tentou, mas aquilo tudo era tão distante da sua realidade. Gostava de pessoas, mas a paciência dava sinais de esgotamento. E o silêncio foi chegando, chegando, até travar o seu maxilar. Era hora de voltar. Voltaram. Cada um para o seu universo particular. Terminaram a semana felizes para sempre.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Ele sucumbia ao pânico, ela descansava lívida.

Dois perdidos numa noite suja. Esse era o título da música que tocava quando ele começou a castigar as teclas. A noite já estava alta. O suficiente para trazer o silêncio que ele tanto queria, para embalar o sono dos bêbados e casais de namorados que, de vez em quando, insistiam em brigar embaixo da sua janela. Conferiu a sua caixa de e-mail, os scraps e as últimas notícias. O corpo ainda queimava por dentro. Começou a rir da própria vulnerabilidade e da sua inútil experiência de mais de três décadas. Listou as tarefas pendentes e pediu a Deus serenidade. Só não disse amém antes de dormir porque sabia que o todo poderoso não aprovaria suas terceiras intenções. Mesmo assim adormeceu com um sorriso escroto de cobiça e perversão.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Um temor que vem do teclado



O mesmo discurso que acalenta é capaz de sangrar. Aquele rapaz, mais do que ninguém, sabia disso. Conhecia bem o peso da palavra escrita. Era o seu ganha pão. Tinha plena consciência de que uma vírgula fora do lugar, uma ordem inversa de orações, um verbo mal empregado ou um adjetivo fora de contexto poderia suscitar equivocadas interpretações, desastrosas reações. Também temia o silêncio das entrelinhas. Segundo ele, um buraco negro sem timbre, entonação, gestos, expressões faciais, respiração, piscar de olhos. Um ambiente profícuo para deduções levianas. Lembrou da universidade, dos teóricos e seus conceitos. De como o ruído na comunicação é capaz de provocar danos.


Diferentemente do projétil (que estraçalha o osso) e da lâmina (que desfigura a carne), o teclado provoca estragos silenciosos. Não há grito ou sangue, mas muito choro e dor. Mais uma vez estava diante de uma situação fora de controle. Entretanto, o fardo da culpa já não comprimia com tanta força sua lordose. Porque ele simplesmente não destilava maldade na ponta dos dedos. De qualquer forma, aquela foi uma tarde de reflexão. Talvez fosse a hora de girar o botão da autocensura ao nível máximo. Desligou o monitor com a certeza que daquele ponto em diante seria um homem de meias palavras. Passou o resto do dia em silêncio. Porque tudo que ele sabia fazer nessa vida era escrever.

domingo, 15 de junho de 2008

Há mulheres que se pintam de caulim


Mata fechada, pedras feitas de sabão, escalada traiçoeira, sede, insetos, calor. Na mochila de ataque apenas o necessário para a subsistência de mais uma aventura. Estranhamente os obstáculos abriam o apetite daquela mulher. Era como se fosse uma comunhão gostosa entre suor, adrenalina, esforço físico e recompensas. Enquanto a fila indiana abria caminho por entre arbustos e galhos, ele, um pouco mais atrás, admirava tanto vigor e determinação. Admirava também o contorno de suas formas. E não sentia culpa por isso. Até encontrou fôlego (depois de uma subida desgastante) para rir da própria cara. Porque ele também a conhecia sobre outras vestes, cores e luzes. E sabia que aquele mesmo caulim que riscava a sua pele morena, que a diferenciava das meninas do grupo e seus estojos de maquiagem, desapareceria ao cair da noite. Sim, porque depois de um merecido banho a argila e a poeira desceriam pelo ralo. E finalmente todos conheceriam sua outra face. Um rosto limpo, marcante e graciosamente feminino.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

O fiapo e a colcha (Coleção Fábulas do Cotidiano)



O equilíbrio nunca foi sua maior virtude. Na realidade, ele era um reino de instabilidade de fazer inveja ao subsolo chinês. Mas isso nunca o impediu de fazer amizades. Pelo contrário. A sua lista de amigos era considerável. Aliás, conhecer pessoalmente todas as 277 pessoas cadastradas na sua página do ORKUT era motivo de orgulho para ele. Sim, aquele rapaz era realmente um cara popular. Mas o nosso anti-herói também sentia medo. Um medo danado de rasgar uma colcha de sentimentos que ele vinha costurando para uma belíssima mulher. Mas apesar de ter usado agulha nova e reforçado os nós, um maldito fiapo ficou à mostra. O suficiente para que a Lei de Murphy entrasse em ação. É isso mesmo que vocês estão imaginando. O infeliz fez o favor de puxar a linha e desfigurar parte do mosaico de retalhos. Depois do estrago xingou o pobre fiapo, como se ele fosse culpado por sua falta de tato, cuidado, atenção. Hoje, mais do que qualquer outro dia, ele tenta correr contra o tempo para entregar a colcha na mais perfeita ordem possível. Porque ele sabe o quanto isso significa para ela e o quanto ela significa para ele.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Infância Perdida

Na fila do banco mãe e filha pequena travam uma batalha. A menina, visivelmente fora de controle, corre, grita, puxa, bate e derruba objetos e todos os seres vivos que encontra pela frente. A mãe, nitidamente sem paciência e vermelha de raiva, dispara o ultimato seco, certeiro, preciso, paralisante:

--- Natália, se você não ficar quieta o policial vai te pegar!

O grito ecoou por todo o saguão. A fila que estava andando parou. O caixa parou. O guarda parou. Até a porta giratória travou. Naquele instante pensei com meus botões: Caramba, aonde foi parar os bons e velhos métodos de coerção? Que sacanagem! Aposentaram o bicho-papão. Maldito progresso.

NA BOCA DA NOITE



O garçom estava arrumando as cadeiras quando ele se aproximou e fez a pergunta:

--- Já está aberto?

O homem mostrou o polegar em sinal de positivo. O suficiente para os dois entrarem no bar, ainda vazio para aquele horário, e escolherem sem nenhuma pressa a melhor mesa. Ela queria um lugar aonde pudesse sentir a brisa. Por dois motivos simples: aliviar o calor desumano e levar para longe a fumaça que seguramente viria com a conversa. Então, um a um, os elementos foram postos sobre o tablado de madeira: a cerveja, o petisco, o cinzeiro. E assim a noite começou. Com um gosto bom de saudade consumida, cevada e pimenta. Naquela mesa não estava apenas um homem e uma mulher, mas duas almas completamente desarmadas, regidas por um delicioso sistema de afinidades, açoitadas diariamente por desejos muitas vezes não atendidos, dispostas a colocar (cada uma a seu modo) o pingo no i das paixões.