sexta-feira, 20 de junho de 2008

Um temor que vem do teclado



O mesmo discurso que acalenta é capaz de sangrar. Aquele rapaz, mais do que ninguém, sabia disso. Conhecia bem o peso da palavra escrita. Era o seu ganha pão. Tinha plena consciência de que uma vírgula fora do lugar, uma ordem inversa de orações, um verbo mal empregado ou um adjetivo fora de contexto poderia suscitar equivocadas interpretações, desastrosas reações. Também temia o silêncio das entrelinhas. Segundo ele, um buraco negro sem timbre, entonação, gestos, expressões faciais, respiração, piscar de olhos. Um ambiente profícuo para deduções levianas. Lembrou da universidade, dos teóricos e seus conceitos. De como o ruído na comunicação é capaz de provocar danos.


Diferentemente do projétil (que estraçalha o osso) e da lâmina (que desfigura a carne), o teclado provoca estragos silenciosos. Não há grito ou sangue, mas muito choro e dor. Mais uma vez estava diante de uma situação fora de controle. Entretanto, o fardo da culpa já não comprimia com tanta força sua lordose. Porque ele simplesmente não destilava maldade na ponta dos dedos. De qualquer forma, aquela foi uma tarde de reflexão. Talvez fosse a hora de girar o botão da autocensura ao nível máximo. Desligou o monitor com a certeza que daquele ponto em diante seria um homem de meias palavras. Passou o resto do dia em silêncio. Porque tudo que ele sabia fazer nessa vida era escrever.

domingo, 15 de junho de 2008

Há mulheres que se pintam de caulim


Mata fechada, pedras feitas de sabão, escalada traiçoeira, sede, insetos, calor. Na mochila de ataque apenas o necessário para a subsistência de mais uma aventura. Estranhamente os obstáculos abriam o apetite daquela mulher. Era como se fosse uma comunhão gostosa entre suor, adrenalina, esforço físico e recompensas. Enquanto a fila indiana abria caminho por entre arbustos e galhos, ele, um pouco mais atrás, admirava tanto vigor e determinação. Admirava também o contorno de suas formas. E não sentia culpa por isso. Até encontrou fôlego (depois de uma subida desgastante) para rir da própria cara. Porque ele também a conhecia sobre outras vestes, cores e luzes. E sabia que aquele mesmo caulim que riscava a sua pele morena, que a diferenciava das meninas do grupo e seus estojos de maquiagem, desapareceria ao cair da noite. Sim, porque depois de um merecido banho a argila e a poeira desceriam pelo ralo. E finalmente todos conheceriam sua outra face. Um rosto limpo, marcante e graciosamente feminino.