terça-feira, 18 de outubro de 2011

Sem olhar pra trás

“Quem me conhecer a partir de agora vai ter o melhor de mim”. A decisão foi tomada logo depois de mastigar o último pedaço de sanduíche natural. Desligou a luz da cozinha e foi lavar o rosto. Mas as mãos em concha não ofereciam a quantidade de água suficiente para lavar a sua nova postura. Despiu-se. Por longos minutos esqueceu as campanhas educativas e praticou o desperdício. Girou a válvula até o limite. Sob o chuveiro ficou a mercê de uma enxurrada. Imóvel. Talvez esperando o que ficou da pele antiga descer ralo abaixo. Tentou se lembrar de como era antes de morder o pão, mas não conseguiu reconstituir a sua própria imagem. Nem poderia. A mulher que escolheu ser, naquela tarde de domingo, já não estava mais subjugada a um passado de perdas recorrentes, de ciclos de covardia, de imobilidades periódicas. Estava enxuta, limpa, lúcida. Pronta para vestir uma roupa nova com estampas graúdas de recomeço.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Os Imcompreendidos

- Tava com muita saudade de você... Muita...

- Amor, você vai achar loucura se eu disser que deu vontade de comer bala soft vermelha?

- Você ouviu o que eu disse, Flávia?

- Eu também gostava muito daquela amarela...

- Tá brincando comigo, né?

- Será que ainda existe no mercado?

- Tudo bem, você venceu, Flávia. Eu vou pra casa.

- Amor, na volta você traz uma bala soft? Vermelha, viu?

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Meteóricos

Estávamos famintos. Sem tempo para cerimônias e regras de etiqueta. Dispensamos os talheres. Rasgamos a carne no dente. Deixamos hematomas. Nos devoramos em um banco infinitamente menor que o nosso apetite. Joguinhos são indicados para quem ainda tem tempo a perder. Não disponho mais desse luxo. Não mais. Naquele carro zíper e botões conheceram a velocidade da luz. Como se o mundo fosse acabar logo depois do último grito, do derradeiro gemido, do suspiro final, do nosso alegre, suado, pervertido e sorridente cansaço.

domingo, 2 de outubro de 2011

Antes do ponto

Eles já conseguem ultrapassar com desenvoltura os monossílabos mutiladores. Nem sempre foi assim. Ironicamente a fartura de verbos e complementos começou na maré baixa, próximo aos recifes. O vinho aberto, o breu, a maresia, o sal, o mundo a rodar e ela procurando um atalho seguro para sair da juventude. O tempo chegou para os dois. A menina ganhou páginas de conhecimento, o rapaz um jeito de disfarçar a idade. Foram vistos conversando no ônibus que liga o centro a zona sul. Ela nem percebeu, mas o que ele mais queria naquele pedaço de tarde era transformar dois dedos de prosa em uma mão espalmada, grande, inteira.