quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Frente e verso

Eu não tive um sonho revelador, não ouvi vozes e nem tampouco presenciei um clarão no céu. O sinal veio diretamente das mãos dela, sem intermediário. Era uma carta (com frente e verso!). Pediu que eu abrisse só depois de sua saída. Obedeci. Esperei ela abrir a porta pra só então rasgar com cuidado o envelope. O perfume salpicado na folha foi uma estratégia bem elaborada. Mas o que estava em minhas mãos iria me tirar do prumo como um velho trem descarrilado. Comecei a ler em pé, encostado no balcão, mas depois de alguns segundos os joelhos dobraram com o peso dos parágrafos. Fui obrigado a sentar, caso contrário, nunca chegaria ao ponto final. Pedi uma dose de volúpia. Depois mais outra. Em seguida, uma terceira. O garçom não se conteve e puxou conversa:

- Dia difícil?

- Não, não

- Mas tanta sede, em tão pouco tempo, deve ter uma razão...

- É que eu acabei de descobrir o amor em letras graúdas. Sabe, meu velho, isso assusta. Principalmente para quem passou a vida inteira sozinho, à sombra dos outros, amaldiçoado pelo manto negro da invisibilidade.

sábado, 17 de setembro de 2011

Escancarados


Para os românticos um olhar já é suficiente. Os empíricos preferem submeter o tal sentimento a testes rigorosos de convivência. Os cautelosos apostam todas as suas fichas no tempo, pois ele tem o poder de revelar o que é casca e o que é recheio. Não sei dizer qual foi o método que eles utilizaram. Não importa. Vi o amor nas pequenas escolhas, no planejamento diário, nas responsabilidades compartilhadas, na fadiga após a batalha. Sim, eu estava lá quando ela deixou o pequeno em braços seguros e foi preparar o jantar. O vento que soprava na varanda trazia a alegria de outras moradas. A minha estava em ser tão bem acolhido, em ser testemunha de uma conquista coletiva. Já era madrugada quando abrimos a segunda garrafa de vinho. Naquela hora ninguém pensou em privacidade. Pelo contrário. Escancaramos janelas para a vida entrar.

domingo, 11 de setembro de 2011

O expectorante


Eu não sei em que parte da jornada a ficha cai e finalmente temos a certeza de que encontramos alguém especial. Nas minhas andanças vi muitas fichas que jamais tocaram o chão. Mas na semana passada uma delas completou a sua trajetória. Ninguém saberá se aquele foi o seu primeiro voo. Acho que não. Pela devoção de suas palavras o amor já estava no peito daquele rapaz há algum tempo. Só não tinha coragem de dizer publicamente que estava apaixonado, de escrever nas redes sociais o quanto aquela mulher mudou a sua rotina de uma forma irreversível. Ele nem se deu conta, mas a cerveja começou a funcionar como um velho e eficiente expectorante. E entre um gole e outro confessou que era o homem mais feliz do mundo. Por trás da baía o sol encerrava o seu expediente. Pediu mais uma garrafa ao garçom. Era sábado. Dia de sorrisos imensuráveis.

sábado, 10 de setembro de 2011

Acima de tudo


Foto Deviantart

Cresceu acreditando que não possuía talento algum. A única coisa da qual se orgulhava era a capacidade de subir na goiabeira de olhos fechados. Parecia um calango cego deslizando entre as folhagens. E foi lá, no último galho, que o grito chegou ao chão.

- Mãe, por que eu tenho que levantar da cama todas as manhãs?

- Para fazer as pessoas sorrirem, respondeu sem largar o sabão e a toalha encardida.

- Mas eu não sou palhaço, mãe! Eu odeio palhaço! Odeio!

- Tá certo. Você é o trapezista da goiabeira.

Ele ria. Sentia-se maior. Era alguém na vida. Finalmente.