domingo, 24 de julho de 2011

O acaso e seus caprichos

O nosso primeiro encontro poderia ter começado de forma mais romântica. Um esbarrão casual no corredor da livraria seria perfeito. Livros ao chão, pedidos de desculpas e elogios sobre a escolha literária de cada um. Outra opção, não menos inspiradora, seria a última sessão de cinema. Os dois chegando simultaneamente na bilheteria, atrasadíssimos e esbaforidos de tanto correr. Em cartaz, Woody Allen, claro. Depois de atravessar a roleta eu diria: “essa foi por pouco!”. O sorriso dela seria a deixa para alinhavar a frase seguinte. Mas o acaso tinha outros planos para nós dois. Nos conhecemos em uma birosca na cidade baixa. Altar dos boêmios, ninho dos bêbados, palco da malandragem. O nosso maior luxo foi uma cerveja quente servida no copo de plástico. Mas naquela noite eu não queria merecer outro lugar. Por isso, antes de dormir, cruzei os dedos e pedi que ela me reconhecesse amanhã ou daqui a um mês. Ela fez mais do que isso. Largou os amigos na calçada, desviou de cadeiras, mesas, garçons e bandejas, enfrentou a euforia de uma pequena multidão, pediu licença, desculpe, obrigada, empurrou, foi empurrada, deu rabissaca e até um bicudo discreto na canela de uma loira, por fim, me encontrou no lado mais escuro do bar. Não deu boa noite, decidiu primeiro recuperar o fôlego nos meus braços.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Na ponta dos dedos

Acho engraçado o seu joelho nervoso, subindo e descendo freneticamente, enlouquecido, procurando acompanhar a velocidade das sinapses e o furor dos dedos sobre o teclado. Nunca entendi o motivo de tanta brutalidade. Acho que o “enter” de tanto apanhar virou masoquista. E o que é pior, as teclas “B”, “A”, “T”, “E” e "!" estão indo no mesmo caminho. Apesar de não concordar com esse açoite eu gosto do resultado final. Há dor e poesia nos seus textos, menina. É como se a página em branco reconhecesse e recompensasse o teu esforço barulhento e solitário. Porque só ela é capaz de suportar a agonia de tantos desejos estrangulados.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Do lado de lá do portão



Os gritos por trás do muro anulavam os meus pedidos de quero entrar. Mas o homem do microfone baixou o som e finalmente alguém girou o trinco no sentido horário. O pesado portão de madeira se abriu. No centro do terreiro a bela morena, descalça e de olhos vendados, tateava a melhor direção para o golpe fatal. Balas e cacos de argila cortaram o ar anunciando que ali havia uma nova vencedora. Horas mais tarde, já recuperada do ritual, ela me revelou o seu verdadeiro nome. Disse também que era de peixes. Não sei se existe alguma ligação astral ou esotérica, mas é a segunda vez que eu sonho com seus pés bailando cegamente sobre a terra molhada.