sexta-feira, 23 de maio de 2008

O fiapo e a colcha (Coleção Fábulas do Cotidiano)



O equilíbrio nunca foi sua maior virtude. Na realidade, ele era um reino de instabilidade de fazer inveja ao subsolo chinês. Mas isso nunca o impediu de fazer amizades. Pelo contrário. A sua lista de amigos era considerável. Aliás, conhecer pessoalmente todas as 277 pessoas cadastradas na sua página do ORKUT era motivo de orgulho para ele. Sim, aquele rapaz era realmente um cara popular. Mas o nosso anti-herói também sentia medo. Um medo danado de rasgar uma colcha de sentimentos que ele vinha costurando para uma belíssima mulher. Mas apesar de ter usado agulha nova e reforçado os nós, um maldito fiapo ficou à mostra. O suficiente para que a Lei de Murphy entrasse em ação. É isso mesmo que vocês estão imaginando. O infeliz fez o favor de puxar a linha e desfigurar parte do mosaico de retalhos. Depois do estrago xingou o pobre fiapo, como se ele fosse culpado por sua falta de tato, cuidado, atenção. Hoje, mais do que qualquer outro dia, ele tenta correr contra o tempo para entregar a colcha na mais perfeita ordem possível. Porque ele sabe o quanto isso significa para ela e o quanto ela significa para ele.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Infância Perdida

Na fila do banco mãe e filha pequena travam uma batalha. A menina, visivelmente fora de controle, corre, grita, puxa, bate e derruba objetos e todos os seres vivos que encontra pela frente. A mãe, nitidamente sem paciência e vermelha de raiva, dispara o ultimato seco, certeiro, preciso, paralisante:

--- Natália, se você não ficar quieta o policial vai te pegar!

O grito ecoou por todo o saguão. A fila que estava andando parou. O caixa parou. O guarda parou. Até a porta giratória travou. Naquele instante pensei com meus botões: Caramba, aonde foi parar os bons e velhos métodos de coerção? Que sacanagem! Aposentaram o bicho-papão. Maldito progresso.

NA BOCA DA NOITE



O garçom estava arrumando as cadeiras quando ele se aproximou e fez a pergunta:

--- Já está aberto?

O homem mostrou o polegar em sinal de positivo. O suficiente para os dois entrarem no bar, ainda vazio para aquele horário, e escolherem sem nenhuma pressa a melhor mesa. Ela queria um lugar aonde pudesse sentir a brisa. Por dois motivos simples: aliviar o calor desumano e levar para longe a fumaça que seguramente viria com a conversa. Então, um a um, os elementos foram postos sobre o tablado de madeira: a cerveja, o petisco, o cinzeiro. E assim a noite começou. Com um gosto bom de saudade consumida, cevada e pimenta. Naquela mesa não estava apenas um homem e uma mulher, mas duas almas completamente desarmadas, regidas por um delicioso sistema de afinidades, açoitadas diariamente por desejos muitas vezes não atendidos, dispostas a colocar (cada uma a seu modo) o pingo no i das paixões.